terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Ensinar e aprender felicidade

Gosto de textos que me levem a refletir. Reflexão é espírito curvando-se sobre si mesmo, pensamento sobre pensamento, mergulho nas profundezas do ser, fazendo de cada um de nós um espelho a refletir luz para outros espelhos.
Nestes dias,  que exerço o magistério não só por herança familiar, mas também por vocação, e sinto-me feliz quando estou em sala de aula, parei para refletir sobre um desses textos, o capítulo inicial do livro de Rubem Alves, “A alegria de ensinar”.
O autor começa falando sobre o sofrimento dos professores. Compara-o à dor do parto: “a mãe o aceita e logo dele se esquece, pela alegria de dar à luz um filho,” e quase como um acalanto para esse sofrimento, o texto cita um poema de Rückert, extraído de um livro de Hermann Hesse:

        Nossos dias são preciosos
        mas com alegria os vemos passando
        se no seu lugar encontramos
        uma coisa mais preciosa crescendo:
        uma planta rara e exótica,
        deleite de um coração jardineiro,
        uma criança que estamos ensinando,
        um livrinho que estamos escrevendo.

Pode um professor cultivar a alegria de um coração jardineiro, vendo seus dias preciosos passando, sem a justa recompensa pelo trabalho prestado? E se ao aluno que ele estiver ensinando não forem dadas condições para uma educação que lhe faça crescer? Família estruturada que seja a primeira escola de amor, valores e exemplos; escola atraente e acolhedora, que não o faça “carregar o peso de um conhecimento morto que ele não consegue integrar com a vida”; sociedade que ajude para que alunos e professores não se tornem reféns do medo e da violência; poder público que não se valha do cassetete para calar a voz de professores... Olhando por esse prisma, os versos do poeta parecem surreais. Mas como tudo na vida tem mais de um lado, é bom meditar sobre a lição mais cheia de esperança, de Rubem Alves.

Na polifonia do seu texto, aquele autor vai buscar no prólogo de Zaratustra, de Nietzsche, a inspiração para mais uma palavra de sabedoria. Observa que a trajetória do sábio começa com uma meditação sobre a felicidade, nascida na solidão: “uma taça que se deixa encher com a alegria que transborda do sol.” Todavia, chegado o tempo em que a taça se enche, ela não consegue conter tudo o que recebe e anseia transbordar, tal qual a abelha que não pode guardar só para si o mel que produz, tal qual o seio intumescido da mãe, suplicando que a boca do filho o esvazie.

Compreendendo que “felicidade solitária é dolorosa”, o sábio busca uma alegria  maior, compartilhar com os outros a felicidade que nele habita, e vai em busca de mãos estendidas com quem possa partir e repartir sua riqueza interior. Nesse momento, opera-se a transformação: “Zaratustra, o sábio, transforma-se em mestre. Pois ser mestre é isto: ensinar a felicidade.”
Essa é uma das lições sobre a qual sempre reflito, que procuro aprender e ensinar em minha vida como professora. Não se trata de encobrir as mazelas de um sistema político e socioeconômico no qual o professor ainda não tem o respeito e o lugar que merece, com um discurso banhado nas águas da pieguice, quando não na torrente da demagogia. Mas quem é professor sabe que as disciplinas que ensinamos não deixam de ser formas diversas de compartilhar sabedoria, e esta só é verdadeira sabedoria quando voltada para a construção de um mundo melhor. Isso não é ensinar e aprender felicidade?

Do mito à razão


Toda a nossa filosofia é uma filosofia do Mundo da Imaginação. É uma busca ferrenha por essa fantasia chamada “conhecimento”, e mais ainda, uma busca pelo “conhecimento verdadeiro”, como se houvesse um conhecimento verdadeiro.

O surgimento da filosofia se dá na Grécia, em VI a.e.c. (antes da era comum), num acontecimento que tomamos por um pequeno “milagre”, uma espécie de “salto de evolução” que chamamos a “passagem do mito à razão”. Numa época em que os deuses eram a explicação de tudo, passa-se a buscar explicações racionais para o mundo e as coisas do mundo. “Passagem do mito à razão”... Acho que valorizamos demais este acontecimento. Ele é antes uma passagem do mito ao mito. Do mito do conhecimento das forças divinas ao mito do conhecimento pelas forças da razão. Ambos, entretanto, têm a mesma origem: A imaginação.

Num momento se imagina que há deuses e forças divinas, no outro, que há “conhecimento verdadeiro”, que há “verdade” e que podem ser obtidos através da razão. Ambas as formas de tentativa de explicação do mundo, são apenas invenções da imaginação. Ambas são uma espécie de “conhecimento” e este tal conhecimento é ele mesmo uma invenção, uma espécie de sonho. Enfim, como bem disse o filósofo Jean-François Lyotard, “O triunfo da razão não passa de uma história que nos contamos”.